quinta-feira, 2 de abril de 2020

Resenha crítica da série Devilman Crybaby

Produzida pela Netflix, Devilman Crybaby é uma série de animação japonesa com 10 episódios e baseada no mangá Devilman de Go Nagai, escrito por Ichirō Ōkouchi. A direção é assinada por Masaaki Yuasa e o ano de lançamento é 2018.

A narrativa inicia-se quando Akira Fudo ouve do seu melhor amigo, Ryo Asuka, que demônios estão prestes a acabar com a humanidade. Então, depois de um incidente que o torna meio homem, meio demônio - classificando-se como um "devilman" - ele não pensa duas vezes e assume as diversas batalhas contra esses diabólicos inimigos.



Nesta análise, não são consideradas as outras obras existentes da "franquia" Devilman. Portanto, a qualidade da obra como adaptação não é utilizada como critério de avaliação. O objetivo é analisar a série isoladamente.

Sem dúvidas, uma das características mais marcantes de Devilman Crybaby é o desenvolvimento dos personagens - quando se observa os rumos tomados pela narrativa, esse fator se torna ainda mais evidente e impressionante. A compaixão propositalmente exagerada do protagonista, Akira, faz com que a parte demoníaca que existe nele o torne um personagem muito interessante por conta de uma dualidade conflitante.

O contraponto de Akira é o seu melhor amigo, Ryo Asuka, que desde a primeira aparição demonstra uma racionalidade que parece, na maioria das situações, o abstrair de sentimentos. Ao longo dos episódios, esse contraponto se salienta e acentua de maneira a instigar o espectador sobre quais os rumos da relação entre os dois personagens.



A humanidade e demonidade servem como parâmetros de discussão sobre o que é ser bom ou mal, certo ou errado. E esses questionamentos evoluem gradativamente ao longo da série, até atingirem o ápice nos últimos dois episódios. Chega-se ao ponto de uma figura demonizada gripar a um grupo de humanos que o cerca: "Vocês é que são demônios!".

E essa perseguição para com o diferente, o que é metaforizado como "demoníaco" é uma das críticas mais sutis e ácidas de Devilman Crybaby: o preconceito. Um outro evento específico que envolve o grupo de rappers - que, por sinal, é um dos destaques positivos da série - também faz-se exemplo de crítica ao preconceito.

Há outras simbologias: a de sempre seguir em frente, que é constantemente metaforizada pelo atletismo (corrida, mais especificamente); e as metáforas utilizadas para os sentimentos de outra das personagens centrais: Miko.

Os instintos animalescos, ou necessidades biológicas que compõem o ser humano são ilustrados de maneira estilizada e ao mesmo tempo, carregada de crueza. A sexualidade, por exemplo, é amplamente retratada ao longo de boa parte da série.

Cada episódio termina com algum gancho muito bem puxado para o seguinte, o que faz com que a narrativa flua de maneira frenética e magnetizante. Essa narrativa viciante, aliada ao fato de o animê ser uma obra original da Netflix, torna-o facilmente maratonável - visto que provavelmente foi pensado justamente para esse formato.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Principais filmes a retratar a Geração Beat

Um dos movimentos culturais mais importantes do século XX, sem dúvidas foi o do rebuliço provocado pela Geração Beat. Escritores de camadas sociais menos abastadas juntaram-se para mudar as estruturas tanto da prosa, quanto da poesia. No entanto, a literatura beatnik muitas vezes é associada à libertinagem - do corpo e do intelecto. Apesar de provocar desgosto em muitos eruditos ao redor do mundo, esse movimento originário dos EUA pós-2ª Guerra Mundial acarretou em uma verdadeira revolução cultural - que mais tarde passou a ser associada à contracultura.

Evidentemente que as marcas deixadas pelos beatniks na história da cultura popular pós-moderna ao longo os anos não se limitou apenas aos seus escritos. Diversas obras cinematográficas foram feitas para retratar as peculiares figuras que encabeçaram a Geração Beat. Alguns dos mais lembrados são:
  • Versos de um Crime (2014)
         Baseado em fatos reais, "Versos de um crime" ("Killing your Darling"), lançado em 2014 e dirigido por John Krokidas, narra parte da juventude do poeta Allen Ginsberg (Daniel Radcliffe). A história, que se passa antes do início da Geração Beat, é centrada nos episódios ocorridos logo após o ingresso de Allen na universidade de Columbia, em Nova Iorque. São colocados em cena os primeiros contatos entre o jovem Allen e os futuros beats Jack Kerouac (Jack Huston) e William Burroughs (Ben Foster). No entanto, é outro rapaz quem recebe grande destaque no filme: Lucien Carr (Dane DeHaan), um dos principais idealizadores do que mais tarde se tornaria o movimento literário protagonizado pelos seus amigos. A trama caminha até um pouco além do ponto em que Carr assassina um homossexual mais velho que nutre uma incansável obsessão por ele.
        A falta de talento de Lucien fica evidente durante toda a narrativa. No entanto, o filme demonstra o quão importante ele fora como incentivador dos colegas. Infelizmente Carr acabou por ganhar sua maior fama graças ao violento crime que cometera. 

          Com direção bastante competente e atuações razoáveis, o filme tem um ritmo que flui bem. Os momentos em que a poesia recebe destaque merecem elogios. Apesar de não ser um grande filme, é interessante acompanhar esse momento da vida dos então desconhecidos e jovens Ginsberg, Burroughs e Kerouac.
  • Uivo (2010) 
          Publicado em 1956, o livro “Howl and Other Poems” (literalmente traduzível como “O Uivo e Outros Poemas”), do poeta Allen Ginsberg, é uma das obras mais importantes da literatura beat. O poema mencionado no título ao livro trata-se de uma longa celebração da vida dos menos afortunados, através de um retrato metafórico da juventude da época. Além disso, "Uivo" conta com uma "nota de rodapé" belíssima - que contrasta com a agressividade na linguagem utilizada no poema. 
       "Howl and Other Poems" é considerado, nos dias de hoje, uma das obras poéticas mais importantes do século XX. No entanto, quando lançado, o livro gerou muita polêmica entre parte dos leitores e da crítica - sendo até mesmo avaliado no tribunal, apontado como "obsceno". 

      Dirigido por  Jeffrey Friedman e Rob Epstein e lançado em 2010, o filme "Uivo" (Howl) se passa justamente no período do julgamento judicial do livro, em meados da década de 1950. O longa, que conta com ótima atuação de James Franco como Allen Ginsberg, coloca o livro em debate e traz diversas possibilidades de interpretação para o poema "Howl" (que é lido na íntegra) ao longo da narrativa. Além disso, permite ao espectador conhecer um pouco mais sobre a história do autor e, consequentemente, da relação dele com os outros escritores beatniks. Vale destacar a interessante estética do filme - que mistura magistralmente filmagem com animação.
  • Na Estrada (2012)
          Constantemente referenciado como "a bíblia beatnik", o romance "On the road", lançado em 1957 por Jack Kerouac, é o livro em prosa mais aclamado da Geração Beat. Semi-autobiográfica, a obra narra um período da juventude de Kerouac em em que ele fizera diversas viagens ao longo dos EUA - inclusive indo até o México. As principais figuras do movimento beat marcam presença na obra, através de alter egos criados pelo autor: Jack Kerouac é Sal Paradise, Neal Cassady é Dean Moriarty, William S. Burroughs é Old Bull Lee, Allen Ginsberg é Carlo Marx e Lucien Carr é Damion.    

          "On the road" é um livro que tem um estilo de linguagem bastante característico, história longa, com muitos detalhes, muitos cenários e muitos personagens. Apesar dessas características, a a narrativa é poderosa, com um ritmo frenético. Adaptar uma obra como essa para a linguagem cinema é uma tarefa bastante arriscada.

           A adaptação homônima, dirigida pelo brasileiro Walter Salles Jr. e lançada em 2012, trata a situação com alguma sensibilidade. Embora a narrativa esteja focada nas viagens dos amigos Sal Paradise e Dean, há cenas sutis que têm como enfoque o desamparo das mulheres de Dean Moriarty - Marilou e Camille -, diante de sua personalidade hedonista.
  • Pull My Daisy (1959) 
            Pull My Daisy, lançado em 1959, tem direção de Alfred Leslie e Robert Frank, além de atuações dos mais escritores mais famosos do movimento beat.

      Todas as principais características da Geração Beat estão bem representadas neste curta-metragem, que tem Jack Kerouac recitando texto por ele escrito, especialmente para o filme. O roteiro é extremamente característico ao estilo de escrita frenético de Jack. Aliás, é o próprio Kerouac que dá voz ao personagens, dublando todas os atores em tela. A estética cinematográfica padrão é rompida, com diversos experimentalismos de câmera - mas que não provocam necessariamente desconforto.

           Allen Ginsberg é um dos personagens principais da história - interpretando a si mesmo - e uma das melhores partes do roteiro faz referência clara e inteligentíssima à nota de rodapé do mais famoso poema de Allen - Uivo; Gregory Corso, outra figura importante no universo beatnik, também tem destaque na narrativa. Tudo isso é abrilhantado pela maravilhosa trilha sonora jazzística. 
  • O Natal de um junkie (1993)
          Lançado em 1993, "O Natal de um junkie" ("The Junky's Christmas") é um curta-metragem de animação em stop motion produzido pelo famosíssimo cineasta Francis Ford Coppola, juntamente de Francine McDougall. A direção é de Nick Donkin e Melodie McDaniel.
              O filme intercala animação com filmagens convencionais e conta com atuação e narração do  escritor William Burroughs. O Natal de um junkie é, na verdade, um conto que William publicou na coleção Interzone de 1989 - e neste curta, é recitado na íntegra. 

             A  história acompanha as dificuldades enfrentadas Danny, um viciado em heroína que saiu da prisão no Natal. É um conto que revela a alma do personagem, que passa por situações de abstinência, luta contra a tentação em suas diversas formas, reflexões morais e a disposição de prestar atos de bondade.



  • Viagem Mágica (2011)
          O documentário retrata uma lendária viagem até a Feira Mundial de Nova York onde embarcaram o famoso autor Ken Kesey e os “Merry Pranksters” - ou “Alegres Brincalhões”. Além disso, é feita uma recapitulação muito interessante da história do movimento protagonizado por Kerouac e companhia.

            E já que houve menção aos camaradas de Jack, é importante dizer que um dos maiores destaques de Magic Trip é contar com filmagens inéditas do lendário Neal Cassady - o eterno Dean Moriarty. Outros beatniks até aparecem, mas o destaque é todo de Neal, que assume o papel de motorista de ônibus, ostentando as suas habilidades atrás do volante.
               
              Dito isso, é bom salientar que os 107 minutos de duração do documentário, dirigido por Alex Gibney e Alison Ellwood, são um tanto maçante. No entanto, servem como entretenimento e talvez agreguem algum detalhe bacana ao conhecimento de quem assistir.

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Há outros filmes que representam bem a essência dos beatniks. No entanto, a maioria dessas obras é bastante complicada de se encontrar, mesmo nos tempos de internet. Essa postagem não tem caráter meramente informativo, mas também serve como uma forma de trocar materiais e dialogar. Portanto, se você tem alguma outra recomendação ou possui algum arquivo/link de filme que se encaixa nos aqui descritos, pode enviar um e-mail para redacao.willianschutz@gmail.com - ficarei muito agradecido.  

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Matéria: Mais rápido do que a própria idade: a curta e intensa trajetória de James Dean, um eterno rebelde sem causa


          Na década de 1950, em pleno pós-guerra, não somente o mundo, mas as artes passavam por diversas transições. O surgimento da cultura popular ganhava mais evidência às massas e os públicos-alvo de obras cinematográficas mudavam gradualmente. Revelaram-se ao longo desses 10 anos na história mundial diversos novos movimentos e ícones populares e artísticos.
          Nas telas do cinema novas preocupações surgiam nos tempos em que a humanidade passava a encarar questões interpessoais e com maior profundidade. A juventude passou a ganhar espaço no protagonismo de filmes que marcariam célebres carreiras e que ainda persistem como intocáveis referências.
          Diretores como Ingmar Bergman, László Benedek, Elia Kazan e Nicholas Ray revelavam em suas obras, através das atemporais problemáticas juvenis, profundas reflexões que ilustravam as realidades sociais da época e que atualmente persistem na realidade de muitos jovens.
          Em 1954 Marlon Brando era considerado o maior ícone da juventude nas telonas. No entanto, ele já era considerado velho demais pelo famoso e polêmico cineasta Nicholas Ray. Portanto, a escolha para estrelar longa Juventude Transviada foi outra: James Bryon Dean, que estava cada vez chamando mais atenção e havia surpreendido estrelando Vidas Amargas (East of Eden), do aclamado e incontestável Elia Kazan.
          O jovem escolhido estava rapidamente despontando rumo a se tornar um ícone cultural da desilusão adolescente e do distanciamento social. Já havia provocado ótimas impressões no teatro e em performances diante das câmeras.
          Com estilo único e que priorizava a liberdade criativa do improviso para incorporar a atuar, Dean fora revelado ao cinema por Elia Kazan, que também revelara Marlon Brando e que era reconhecido como um dos fundadores do lendário Actors Studio.
Quando Vidas Amargas foi lançado em 16 de maio de 1955, Juventude Transviada ainda estava em fase de produção. James Dean realmente foi destaque e fez com que a juventude da época se identificasse com as questões do protagonista Cal Trask.
          As filmagens do segundo filme protagonizado pelo jovem foram um sucesso. Nicholas Ray decidiu então escolher Dean para atuar em um longa de mais de 3 horas de duração: Assim Caminha a Humanidade, que foi lançado em 10 de outubro de 1955.
          Originalmente chamado de Giant, Assim Caminha a Humanidade acompanha um rancheiro milionário do Texas e a refinada Bick Benedict. Eles se casam, mas ela não se entende muito bem com a irmã de seu novo marido e, ao mesmo tempo, ganha a admiração do jovem ambicioso Jett Rink (James Dean), que passa por uma grande reviravolta. Ao longo dos anos, cresce a rivalidade entre Bick e Jett e a sorte de todos está prestes a mudar.
          Dean também teve ótimo desempenho no terceiro filme. Em vários momentos da longa projeção ele simplesmente rouba a cena com o carisma transpassado no seu jeito de interpretar.
Assim que as gravações de Assim Caminha a Humanidade tinham terminado, James imediatamente retornou à sua rotina, que curiosamente era refletida em seus principais papéis: galanteador, de personalidade forte e com grande ligação com a velocidade.
          James era famoso por ser um rapaz simples, que, apesar de muito apresso aos hábitos de leitura e amor incondicional pela sétima arte, não negava participar de boas festas.
          Uma das cenas mais lembradas de Juventude Transviada mostra um insana disputa de carros em direção à queda de um penhasco. O desafio colocado entre os dois jovens que disputavam entre si: "o primeiro a saltar do carro, é um 'frangote'". Então, passa-se em tela uma brilhante sequência que exalta a velocidade e a alta tensão.
          Não é acaso que essa seja uma das cenas mais lembradas do filme, que teve a criação do roteiro se baseando em uma pequena história sobre disputa de gangues de jovens, tendo apenas a sequência do duelo de carros. A Warner comprou esta idéia e, apenas depois, se desenvolveu a trama.
Seus dois últimos filmes ainda estavam na fase de pós-produção quando James Dean morreu em um acidente de carro, às 17h45 do dia de 30 de setembro de 1955.  A colisão frontal aconteceu na interseção de duas estradas estaduais, a 46 e a 41, perto da cidade de Cholame, na Califórnia, a aproximadamente 300 km de Los Angeles.
          Duas horas depois de ter recebido uma multa por alta velocidade, James pilotava Porsche 550 Spyder prateado, que tinha o apelido de "Little Bastard" (literalmente traduzível como "Pequeno Bastardo").
          Quando Assim Caminha a Humanidade estrou, a juventude norte-americana ainda estava profundamente abalada com a inesperada morte do ator. O lançamento foi em 10 de outubro de 1955.
          Mas o maior sucesso da carreira de Dean foi mesmo Juventude Transviada. Originalmente titulado como Rebel Without a Cause, o longa metragem de drama lançado em 26 de outubro de 1955 é o último filme estrado pelo então ícone em explosiva ascensão James Dean e é considerado o seu maior sucesso cinematográfico. Sinopse do filme: Jim Stark é um jovem problemático e, por sua causa, os pais se mudam de uma cidade para outra, até se fixarem em Los Angeles. Certo dia, ele é preso por embriaguez e desordem, e conhece outros dois jovens com pequenos delitos. Após ser libertado, tenta se aproximar de Judy, mas cria rivalidade com o namorado da moça, com trágicas consequências.
          James Dean foi batizado de "o rebelde da América" por Ronald Reagan também ator e mais tarde presidente dos Estados Unidos. Além disso, na cerimônia de celebração do Oscar de 1956 James Dean foi o primeiro ator a receber uma indicação póstuma como "Melhor Ator". Em 1999, o American Film Institute classificou-o como o 18º maior astro masculino do cinema da Era de Ouro de Hollywood em sua lista 100 Anos... 100 Estrelas.

Cartaz oficial de Juventude Transviada. Direitos reservados à Warner Bros. 

Resenha crítica do filme Quase Famosos (2000)




          O cenário musical da década de 1970 tinha os grandes nomes da indústria do rock n' roll como pilares para a formação sociocultural de boa parte da juventude da época. Bandas como Black Sabbath, Led Zeppelin, Ziggy Stardust and The Spiders From Mars (de David Bowie), Lynyrd Skynyrd e músicos como Bob Dylan e Elton John eram os principais expoentes de um movimento que dava continuidade ao movimento hippie dos anos 1960 (que surgira como consequência da ideologia da famosa Geração Beat do Estados Unidos) - que arrastava multidões por onde passava. Com isso, as pessoas envolvidas nesse cenário, com extravagâncias e veia artística, pareciam mais como grandes personagens fictícios. Quase Famosos (Almost Famous), filme semi-autobiográfico dirigido por Cameron Crowe, lançado no ano 2000, emula bem a essência de uma época bastante representativa da história.
          Com o crescente sucesso do rock, as revistas de jornalismo especializado gradativamente ganharam mais notoriedade. A maior delas é, desde a década representada no longa de Crowe, é a Rolling Stone - que tem grande importância no enredo.

Cartaz oficial do filme. Todos os direitos reservados à Universal Pictures.

           Inspirado em uma história da adolescência do próprio Cameron Crowe, Quase Famosos acompanha o período da vida de William Miller, um menino que, ao ganhar a coleção de discos da irmã, torna-se um grande fã de música - mais especificamente dos gêneros folk e rock. Depois de quatro anos escutando muito material, estudando e escrevendo resenhas por prazer, William, com apenas 15 anos de idade, agarra a oportunidade de trabalhar para a revista Rolling Stone. Seu primeiro trabalho: acompanhar a turnê Almost Famous '73 da banda Stillwater. Situações absurdas acontecem ao longo da viagem, que passa por diversas cidades.
            Um dos maiores acertos em Quase Famosos é, sem dúvidas, na questão estética: os designers de arte e produção caracterizaram fielmente todos os aspectos o cenário da década de 1970. As roupas, os penteados, os objetos, as fotos, os cenários... tudo é fielmente reproduzido.
             O elemento que também ajuda bastante na ambientação da película é a trilha sonora. Uma seleção de grandes sucessos da década retratada, cuidadosamente escolhida, faz com que a experiência cinematográfica seja ainda mais imersiva.
             A direção de fotografia, no entanto, não é muito inventiva. De modo geral, é uma direção "quadrada" - o que significa que não há significativos experimentalismos de linguagem. Isso não chega a ser um defeito, apesar de tudo.
             A trama é muito bem construída: todos os arcos que envolvem os personagens principais e secundários se fecham adequadamente, do início ao fim.
             O ponto alto do filme são os personagens. A banda fictícia Stillwater funciona como uma espécie de alegoria alusiva aos músicos de rock dos anos 1970 - brincando com mitos que cerca os grandes astros da época. Todos os personagens têm uma clara evolução ao longo da trama. Destaque para a complexa Penny Lane (muito bem interpretada por Kate Hudson, indicada ao Oscar de melhor atriz coadjuvante e vencedora do Globo de Ouro desta categoria); o protagonista William também é muito bem trabalhado, com sentimentos e motivações bem definidas. Os participantes da história são acompanhados tão de perto que, mesmo com os diversos artifícios narrativos utilizados, criam uma espécie de vínculo com o espectador.
            Quase Famosos merecidamente tornou-se um cult entre os apreciadores da música setentista e os estudantes de jornalismo. É um longa-metragem que marca o espectador por seu clima envolvente. O clima de mistura entre realidade e ficção faz com que se tenha vontade de ouvir as canções da Stillwater e compartilhar um pouquinho desse universo tão bem caracterizado.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Resenha crítica: Hollywood, de Charles Bukowski


          Charles Bukowski foi um escritor que realmente sabia como ser direto. O velho safado não escondia em seus livros o fato de ser um velho bêbado safado que tinha grande senso de humor e apreço pelos fracassados e esquecidos, além de que sua obra é de teor bastante auto-biográfico. Em Hollywood, o bêbado alemão mais americano da história da literatura nos trás relatos hilários da sua experiência ao escrever pela primeira e única vez um argumento para um filme de cinema. E que história regada de fatos absurdos - e engraçados... Neste romance, temos essencialmente Bukowski escrevendo sobre Bukowski (devidamente personificado no alter ego, Hank Chinaski) escrever um filme sobre Bukowski.


          Com algumas referências sobre cinema e literatura quase que escondidas no decorrer do livro, Hollywood é repleto de situações hilárias - leiam para sabem... mas algumas envolvem velhas russas com fetiche, bairros negros absurdos, galinhas, e porres -, mas também tem fortes passagens que geram reflexões - além de alfinetadas afiadas no nicho artístico.

          Charles Bukowski investe muito em caracterizar seus personagens em mínimos detalhes. O protagonista que vive dando choques de realidade impiedosos em todos ao seu redor - inclusive no leitor; a esposa companheira que provavelmente salvou o marido inconsequente da auto-destruição; o amigo de longa data que marca presença somente em momentos decisivos; os artistas excêntricos.

          A cidade de Hollywood é caracterizada brilhantemente nas entrelinhas do livro, tendo seus lados mais obscuros e esquecidos mostrados com clareza e naturalidade despreocupada. O autor demonstra discretamente a sua sensibilidade ao olhar para todos os talentos perdidos e para todas as pessoas que vivem em crescente decadências, esquecidas por todos.

         Com linguagem simples - sem rebuscamento, tudo muito coloquial - e diálogos brilhantemente construídos - e definitivamente marcantes -, o romance de Bukowski prova que ele não vendeu-se (apesar dele mesmo ter medo disso, e o livro parecer um reflexão sobre) para o estrelato de Hollywood, e que sua obra sempre será o retrato genuíno do seu pensamento reflexivo. É uma leitura prazerosa e que flui rapidamente, fazendo desde os leitores mais exigentes, até os bêbados mais fiéis do bom e velho tio Bukowski se divertirem.

 Aqui vão algumas passagens que eu destaquei no livro: 
   
"[...] não se pode viver sempre escrevendo, e havia muito espaço a preencher. Eu o preenchia com uísque, cerveja e mulheres. Eu acabei me enchendo das mulheres e me concentrei no uísque e na cerveja." - Sobre o alcoolismo de Chinaski, e sua facilidade de se sentir repulsivo.  

"Eu geralmente passava às damas o dinheiro do táxi, mandava-as dar o fora e continuava bebendo sozinho. Duvido que usassem o dinheiro do táxi em táxis." - Sobre as putas da Califórnia. 

Todo o discurso de Jean-Paul sobre todos serem imundos... "TODOS NÓS TEMOS CU, CERTO?"... Página 30.

"Faltava totalmente alguma coisa nos pobres sujeitos, e alguma coisa em mim doeu, apenas por um instante, e senti vontade de abraçá-los, consolá-los e beijá-los com um Dostoiévski, mas sabia que isso no fim não levaria a nada, a não ser ao ridículo e à humilhação, para mim mesmo e para eles." - Sobre seus leitores pobres, bêbados e fracassados. 

Páginas 54 e 55 fazem a junção da poesia com a prosa.

"Uma de minhas mulheres passadas berrara para mim:
- Você bebe para sair da realidade!
- É claro, minha cara - lhe respondera.
Usava a garrafa e a máquina. Gostava de ter um pássaro em cada mão, ao diabo com o mato."

"Talvez tivesse conhecido escritores demais. Eles levavam mais tempo falando mal uns dos outros do que fazendo seu trabalho. Eram nervosos, fofoqueiros, velhas solteironas; viviam se lamentando, dando facadas, inchados de vaidade. Eram esses os nossos criadores? Sempre fora assim? Provavelmente sim. Talvez escrever fosse uma forma de lamento. Alguns simplesmente se lamentavam melhor do que os outros." - Sobre escritores e a arte de escrever.
"[...] não tinha medo das feministas. Era um dos últimos defensores da masculinidade e dos colhões no país. Para isso era preciso ter raça" - Sobre atitudes e liberdade de expressão.

           "[...] mas, como a maioria das almas grandes, gostava de um traguinho de vez em quando." - Sobre o alcoolismo em relação aos artistas e intelectuais.

Brilhante diálogo da página 170 - uma entrevista de Chinaski, onde este é impagável.

"A melhor parte de um escritor está no papel. A outra é geralmente bobagem."

"O pai do dono da casa era hippie. Os dois liam o L.A Free Press. Eu escrevia uma coluna, 'Notas de um Homem de Neanderthal'."  - Referência ao livro do Bukowski e coluna que deu origem ao mesmo, "Notas de um velho safado".

 Paro por aqui, pelo fato das minha próximas marcações entregarem muitos detalhes do desenvolvimento. Mas acho que já é suficiente para teres vontade de ler e grifar todo o livro, não é?  ;) 
  

  A edição brasileira foi feita pela editora LPM (que ficou responsável por quase todos os trabalhos do Velho Safado por aqui). A tradução é razoavelmente boa (aceitável). O livro foi publicado em formato de bolso, tem capa fosca e papel off set branco.   

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Resenha crítica do livro: Bowie - A Biografia, escrito por Wendy Leigh



  • O livro que deveria apresentar a biografia mais atualizada do lendário músico britânico David Bowie - conhecido como "O Camaleão do Rock" - talvez devesse se chamar "Aventuras sexuais de David Bowie". Isso se deve ao fato de Wendy Leigh ter escrito um livro que aprofunda-se forçadamente em relação ao casos de David Bowie, preenchendo boa parte do livro reafirmando questões sexuais - apesar de Bowie ter quebrado barreiras sexuais na cultura pop, esse detalhe não é apenas um detalhes no livro -, assim tristemente apresentando de maneira muito superficial a musicalidade do cantor. 



 David Bowie  (nome artístico de David Jones) nasceu na Inglaterra, em 1947. Uma criança de classe média que nascera num pós-guerra onde a marginalidade era comum nos bairros britânicos, David sempre sonhou em ser artista. Um erudito que gostava de cantar, tocar instrumentos, compor, esculpir, pintar, escrever e atuar, ainda rapaz ele começou a tocar saxofone em pubs londrinos, e a compor canções inspiradas em artistas e obras que se fixavam em sua mente. Ao perceber que saxofone não seria seu futuro, o jovem David investe em carreira solo, tocando violão e cantando, acompanhado de uma banda.  Em 1969, Bowie lançou a música Space Oddity, do álbum homônimo, inspirada em 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. Essa foi a música que deu início ao sucesso do artista, que dentro de alguns anos seria considerado uma lenda viva do rock. David Bowie colecionou sucessos atrás de sucessos, prêmios atrás de prêmios, e se tornou o queridinho dos críticos até sua morte. David também atuou em diversos filmes famosos - que ficam então, ao critério do leitor procurar. O homem de incontáveis facetas faleceu em janeiro de 2016, e deixou um legado imenso de obras. David Bowie é essencial e imortal.
 
Há de se reclamar do fato de da jornalista e escritora Wendy Leigh ter apresentado a discografia do cantor de maneira muito corrida, fazendo provavelmente com que o leitor que não tenha muito conhecimento externo sobre a carreira fique sentindo-se perdido. Os álbuns não são devidamente explorados: erro fatal ao se escrever a biografia de qualquer músico de sucesso.

Os períodos são bastante irregulares e confusos: Wendy faz saltos temporais e mistura durante todo o
escrito, informações sobre a vida do biografado. Não tendo-se assim, uma cronologia dentro do próprio livro.

Nem tudo é um desastre completo nesta biografia. A personalidade misteriosa, intrigante e polêmica de David Bowie é traçada de maneira quase que envolvente. Desse modo, as passagens sobre a persona do artista prendem o leitor até a próxima descrição sexual exagerada e cansativa. Também é notável que o trabalho de pesquisa foi bastante amplo - o que era de se esperar de uma autora de diversas biografias "bem-sucedidas"-, frio e bem embasado.

Uma biografia lançada surpreendentemente após apenas menos de três meses passados a morte do biografado David Jones,  serve como questionamento em relação ao sensacionalismo por detrás desta e seu repentino lançamento, e também serve como um passa-tempo despretensioso apesar de estar muito longe de ser um grande livro do gênero.




  • A edição brasileira, da editora BestSeller também merece destaque:O traducional encadernamento em brochura tem uma capa bonita, com reflexo de luz e faz alusão às capas de Aladdin Sane (1973) e Pin Ups (1973). Quem compra livros pela capa, de certeza compraria esta edição de tradução regular - quem não lê Inglês vai perder algumas referências de músicas que aqui foram mal traduzidas, sendo que alguns trechos nem ao menos são. Quem quiser ler uma boa biografia de David Bowie deverá importar algum dos muitos livros lá fora lançados, ou comprar a edição de Marc Spitz da história, publicado no Brasil pela Benvira.