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quinta-feira, 2 de abril de 2020

Resenha crítica da série Devilman Crybaby

Produzida pela Netflix, Devilman Crybaby é uma série de animação japonesa com 10 episódios e baseada no mangá Devilman de Go Nagai, escrito por Ichirō Ōkouchi. A direção é assinada por Masaaki Yuasa e o ano de lançamento é 2018.

A narrativa inicia-se quando Akira Fudo ouve do seu melhor amigo, Ryo Asuka, que demônios estão prestes a acabar com a humanidade. Então, depois de um incidente que o torna meio homem, meio demônio - classificando-se como um "devilman" - ele não pensa duas vezes e assume as diversas batalhas contra esses diabólicos inimigos.



Nesta análise, não são consideradas as outras obras existentes da "franquia" Devilman. Portanto, a qualidade da obra como adaptação não é utilizada como critério de avaliação. O objetivo é analisar a série isoladamente.

Sem dúvidas, uma das características mais marcantes de Devilman Crybaby é o desenvolvimento dos personagens - quando se observa os rumos tomados pela narrativa, esse fator se torna ainda mais evidente e impressionante. A compaixão propositalmente exagerada do protagonista, Akira, faz com que a parte demoníaca que existe nele o torne um personagem muito interessante por conta de uma dualidade conflitante.

O contraponto de Akira é o seu melhor amigo, Ryo Asuka, que desde a primeira aparição demonstra uma racionalidade que parece, na maioria das situações, o abstrair de sentimentos. Ao longo dos episódios, esse contraponto se salienta e acentua de maneira a instigar o espectador sobre quais os rumos da relação entre os dois personagens.



A humanidade e demonidade servem como parâmetros de discussão sobre o que é ser bom ou mal, certo ou errado. E esses questionamentos evoluem gradativamente ao longo da série, até atingirem o ápice nos últimos dois episódios. Chega-se ao ponto de uma figura demonizada gripar a um grupo de humanos que o cerca: "Vocês é que são demônios!".

E essa perseguição para com o diferente, o que é metaforizado como "demoníaco" é uma das críticas mais sutis e ácidas de Devilman Crybaby: o preconceito. Um outro evento específico que envolve o grupo de rappers - que, por sinal, é um dos destaques positivos da série - também faz-se exemplo de crítica ao preconceito.

Há outras simbologias: a de sempre seguir em frente, que é constantemente metaforizada pelo atletismo (corrida, mais especificamente); e as metáforas utilizadas para os sentimentos de outra das personagens centrais: Miko.

Os instintos animalescos, ou necessidades biológicas que compõem o ser humano são ilustrados de maneira estilizada e ao mesmo tempo, carregada de crueza. A sexualidade, por exemplo, é amplamente retratada ao longo de boa parte da série.

Cada episódio termina com algum gancho muito bem puxado para o seguinte, o que faz com que a narrativa flua de maneira frenética e magnetizante. Essa narrativa viciante, aliada ao fato de o animê ser uma obra original da Netflix, torna-o facilmente maratonável - visto que provavelmente foi pensado justamente para esse formato.

sexta-feira, 12 de julho de 2019

Principais filmes a retratar a Geração Beat

Um dos movimentos culturais mais importantes do século XX, sem dúvidas foi o do rebuliço provocado pela Geração Beat. Escritores de camadas sociais menos abastadas juntaram-se para mudar as estruturas tanto da prosa, quanto da poesia. No entanto, a literatura beatnik muitas vezes é associada à libertinagem - do corpo e do intelecto. Apesar de provocar desgosto em muitos eruditos ao redor do mundo, esse movimento originário dos EUA pós-2ª Guerra Mundial acarretou em uma verdadeira revolução cultural - que mais tarde passou a ser associada à contracultura.

Evidentemente que as marcas deixadas pelos beatniks na história da cultura popular pós-moderna ao longo os anos não se limitou apenas aos seus escritos. Diversas obras cinematográficas foram feitas para retratar as peculiares figuras que encabeçaram a Geração Beat. Alguns dos mais lembrados são:
  • Versos de um Crime (2014)
         Baseado em fatos reais, "Versos de um crime" ("Killing your Darling"), lançado em 2014 e dirigido por John Krokidas, narra parte da juventude do poeta Allen Ginsberg (Daniel Radcliffe). A história, que se passa antes do início da Geração Beat, é centrada nos episódios ocorridos logo após o ingresso de Allen na universidade de Columbia, em Nova Iorque. São colocados em cena os primeiros contatos entre o jovem Allen e os futuros beats Jack Kerouac (Jack Huston) e William Burroughs (Ben Foster). No entanto, é outro rapaz quem recebe grande destaque no filme: Lucien Carr (Dane DeHaan), um dos principais idealizadores do que mais tarde se tornaria o movimento literário protagonizado pelos seus amigos. A trama caminha até um pouco além do ponto em que Carr assassina um homossexual mais velho que nutre uma incansável obsessão por ele.
        A falta de talento de Lucien fica evidente durante toda a narrativa. No entanto, o filme demonstra o quão importante ele fora como incentivador dos colegas. Infelizmente Carr acabou por ganhar sua maior fama graças ao violento crime que cometera. 

          Com direção bastante competente e atuações razoáveis, o filme tem um ritmo que flui bem. Os momentos em que a poesia recebe destaque merecem elogios. Apesar de não ser um grande filme, é interessante acompanhar esse momento da vida dos então desconhecidos e jovens Ginsberg, Burroughs e Kerouac.
  • Uivo (2010) 
          Publicado em 1956, o livro “Howl and Other Poems” (literalmente traduzível como “O Uivo e Outros Poemas”), do poeta Allen Ginsberg, é uma das obras mais importantes da literatura beat. O poema mencionado no título ao livro trata-se de uma longa celebração da vida dos menos afortunados, através de um retrato metafórico da juventude da época. Além disso, "Uivo" conta com uma "nota de rodapé" belíssima - que contrasta com a agressividade na linguagem utilizada no poema. 
       "Howl and Other Poems" é considerado, nos dias de hoje, uma das obras poéticas mais importantes do século XX. No entanto, quando lançado, o livro gerou muita polêmica entre parte dos leitores e da crítica - sendo até mesmo avaliado no tribunal, apontado como "obsceno". 

      Dirigido por  Jeffrey Friedman e Rob Epstein e lançado em 2010, o filme "Uivo" (Howl) se passa justamente no período do julgamento judicial do livro, em meados da década de 1950. O longa, que conta com ótima atuação de James Franco como Allen Ginsberg, coloca o livro em debate e traz diversas possibilidades de interpretação para o poema "Howl" (que é lido na íntegra) ao longo da narrativa. Além disso, permite ao espectador conhecer um pouco mais sobre a história do autor e, consequentemente, da relação dele com os outros escritores beatniks. Vale destacar a interessante estética do filme - que mistura magistralmente filmagem com animação.
  • Na Estrada (2012)
          Constantemente referenciado como "a bíblia beatnik", o romance "On the road", lançado em 1957 por Jack Kerouac, é o livro em prosa mais aclamado da Geração Beat. Semi-autobiográfica, a obra narra um período da juventude de Kerouac em em que ele fizera diversas viagens ao longo dos EUA - inclusive indo até o México. As principais figuras do movimento beat marcam presença na obra, através de alter egos criados pelo autor: Jack Kerouac é Sal Paradise, Neal Cassady é Dean Moriarty, William S. Burroughs é Old Bull Lee, Allen Ginsberg é Carlo Marx e Lucien Carr é Damion.    

          "On the road" é um livro que tem um estilo de linguagem bastante característico, história longa, com muitos detalhes, muitos cenários e muitos personagens. Apesar dessas características, a a narrativa é poderosa, com um ritmo frenético. Adaptar uma obra como essa para a linguagem cinema é uma tarefa bastante arriscada.

           A adaptação homônima, dirigida pelo brasileiro Walter Salles Jr. e lançada em 2012, trata a situação com alguma sensibilidade. Embora a narrativa esteja focada nas viagens dos amigos Sal Paradise e Dean, há cenas sutis que têm como enfoque o desamparo das mulheres de Dean Moriarty - Marilou e Camille -, diante de sua personalidade hedonista.
  • Pull My Daisy (1959) 
            Pull My Daisy, lançado em 1959, tem direção de Alfred Leslie e Robert Frank, além de atuações dos mais escritores mais famosos do movimento beat.

      Todas as principais características da Geração Beat estão bem representadas neste curta-metragem, que tem Jack Kerouac recitando texto por ele escrito, especialmente para o filme. O roteiro é extremamente característico ao estilo de escrita frenético de Jack. Aliás, é o próprio Kerouac que dá voz ao personagens, dublando todas os atores em tela. A estética cinematográfica padrão é rompida, com diversos experimentalismos de câmera - mas que não provocam necessariamente desconforto.

           Allen Ginsberg é um dos personagens principais da história - interpretando a si mesmo - e uma das melhores partes do roteiro faz referência clara e inteligentíssima à nota de rodapé do mais famoso poema de Allen - Uivo; Gregory Corso, outra figura importante no universo beatnik, também tem destaque na narrativa. Tudo isso é abrilhantado pela maravilhosa trilha sonora jazzística. 
  • O Natal de um junkie (1993)
          Lançado em 1993, "O Natal de um junkie" ("The Junky's Christmas") é um curta-metragem de animação em stop motion produzido pelo famosíssimo cineasta Francis Ford Coppola, juntamente de Francine McDougall. A direção é de Nick Donkin e Melodie McDaniel.
              O filme intercala animação com filmagens convencionais e conta com atuação e narração do  escritor William Burroughs. O Natal de um junkie é, na verdade, um conto que William publicou na coleção Interzone de 1989 - e neste curta, é recitado na íntegra. 

             A  história acompanha as dificuldades enfrentadas Danny, um viciado em heroína que saiu da prisão no Natal. É um conto que revela a alma do personagem, que passa por situações de abstinência, luta contra a tentação em suas diversas formas, reflexões morais e a disposição de prestar atos de bondade.



  • Viagem Mágica (2011)
          O documentário retrata uma lendária viagem até a Feira Mundial de Nova York onde embarcaram o famoso autor Ken Kesey e os “Merry Pranksters” - ou “Alegres Brincalhões”. Além disso, é feita uma recapitulação muito interessante da história do movimento protagonizado por Kerouac e companhia.

            E já que houve menção aos camaradas de Jack, é importante dizer que um dos maiores destaques de Magic Trip é contar com filmagens inéditas do lendário Neal Cassady - o eterno Dean Moriarty. Outros beatniks até aparecem, mas o destaque é todo de Neal, que assume o papel de motorista de ônibus, ostentando as suas habilidades atrás do volante.
               
              Dito isso, é bom salientar que os 107 minutos de duração do documentário, dirigido por Alex Gibney e Alison Ellwood, são um tanto maçante. No entanto, servem como entretenimento e talvez agreguem algum detalhe bacana ao conhecimento de quem assistir.

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Há outros filmes que representam bem a essência dos beatniks. No entanto, a maioria dessas obras é bastante complicada de se encontrar, mesmo nos tempos de internet. Essa postagem não tem caráter meramente informativo, mas também serve como uma forma de trocar materiais e dialogar. Portanto, se você tem alguma outra recomendação ou possui algum arquivo/link de filme que se encaixa nos aqui descritos, pode enviar um e-mail para redacao.willianschutz@gmail.com - ficarei muito agradecido.  

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Resenha crítica: Hollywood, de Charles Bukowski


          Charles Bukowski foi um escritor que realmente sabia como ser direto. O velho safado não escondia em seus livros o fato de ser um velho bêbado safado que tinha grande senso de humor e apreço pelos fracassados e esquecidos, além de que sua obra é de teor bastante auto-biográfico. Em Hollywood, o bêbado alemão mais americano da história da literatura nos trás relatos hilários da sua experiência ao escrever pela primeira e única vez um argumento para um filme de cinema. E que história regada de fatos absurdos - e engraçados... Neste romance, temos essencialmente Bukowski escrevendo sobre Bukowski (devidamente personificado no alter ego, Hank Chinaski) escrever um filme sobre Bukowski.


          Com algumas referências sobre cinema e literatura quase que escondidas no decorrer do livro, Hollywood é repleto de situações hilárias - leiam para sabem... mas algumas envolvem velhas russas com fetiche, bairros negros absurdos, galinhas, e porres -, mas também tem fortes passagens que geram reflexões - além de alfinetadas afiadas no nicho artístico.

          Charles Bukowski investe muito em caracterizar seus personagens em mínimos detalhes. O protagonista que vive dando choques de realidade impiedosos em todos ao seu redor - inclusive no leitor; a esposa companheira que provavelmente salvou o marido inconsequente da auto-destruição; o amigo de longa data que marca presença somente em momentos decisivos; os artistas excêntricos.

          A cidade de Hollywood é caracterizada brilhantemente nas entrelinhas do livro, tendo seus lados mais obscuros e esquecidos mostrados com clareza e naturalidade despreocupada. O autor demonstra discretamente a sua sensibilidade ao olhar para todos os talentos perdidos e para todas as pessoas que vivem em crescente decadências, esquecidas por todos.

         Com linguagem simples - sem rebuscamento, tudo muito coloquial - e diálogos brilhantemente construídos - e definitivamente marcantes -, o romance de Bukowski prova que ele não vendeu-se (apesar dele mesmo ter medo disso, e o livro parecer um reflexão sobre) para o estrelato de Hollywood, e que sua obra sempre será o retrato genuíno do seu pensamento reflexivo. É uma leitura prazerosa e que flui rapidamente, fazendo desde os leitores mais exigentes, até os bêbados mais fiéis do bom e velho tio Bukowski se divertirem.

 Aqui vão algumas passagens que eu destaquei no livro: 
   
"[...] não se pode viver sempre escrevendo, e havia muito espaço a preencher. Eu o preenchia com uísque, cerveja e mulheres. Eu acabei me enchendo das mulheres e me concentrei no uísque e na cerveja." - Sobre o alcoolismo de Chinaski, e sua facilidade de se sentir repulsivo.  

"Eu geralmente passava às damas o dinheiro do táxi, mandava-as dar o fora e continuava bebendo sozinho. Duvido que usassem o dinheiro do táxi em táxis." - Sobre as putas da Califórnia. 

Todo o discurso de Jean-Paul sobre todos serem imundos... "TODOS NÓS TEMOS CU, CERTO?"... Página 30.

"Faltava totalmente alguma coisa nos pobres sujeitos, e alguma coisa em mim doeu, apenas por um instante, e senti vontade de abraçá-los, consolá-los e beijá-los com um Dostoiévski, mas sabia que isso no fim não levaria a nada, a não ser ao ridículo e à humilhação, para mim mesmo e para eles." - Sobre seus leitores pobres, bêbados e fracassados. 

Páginas 54 e 55 fazem a junção da poesia com a prosa.

"Uma de minhas mulheres passadas berrara para mim:
- Você bebe para sair da realidade!
- É claro, minha cara - lhe respondera.
Usava a garrafa e a máquina. Gostava de ter um pássaro em cada mão, ao diabo com o mato."

"Talvez tivesse conhecido escritores demais. Eles levavam mais tempo falando mal uns dos outros do que fazendo seu trabalho. Eram nervosos, fofoqueiros, velhas solteironas; viviam se lamentando, dando facadas, inchados de vaidade. Eram esses os nossos criadores? Sempre fora assim? Provavelmente sim. Talvez escrever fosse uma forma de lamento. Alguns simplesmente se lamentavam melhor do que os outros." - Sobre escritores e a arte de escrever.
"[...] não tinha medo das feministas. Era um dos últimos defensores da masculinidade e dos colhões no país. Para isso era preciso ter raça" - Sobre atitudes e liberdade de expressão.

           "[...] mas, como a maioria das almas grandes, gostava de um traguinho de vez em quando." - Sobre o alcoolismo em relação aos artistas e intelectuais.

Brilhante diálogo da página 170 - uma entrevista de Chinaski, onde este é impagável.

"A melhor parte de um escritor está no papel. A outra é geralmente bobagem."

"O pai do dono da casa era hippie. Os dois liam o L.A Free Press. Eu escrevia uma coluna, 'Notas de um Homem de Neanderthal'."  - Referência ao livro do Bukowski e coluna que deu origem ao mesmo, "Notas de um velho safado".

 Paro por aqui, pelo fato das minha próximas marcações entregarem muitos detalhes do desenvolvimento. Mas acho que já é suficiente para teres vontade de ler e grifar todo o livro, não é?  ;) 
  

  A edição brasileira foi feita pela editora LPM (que ficou responsável por quase todos os trabalhos do Velho Safado por aqui). A tradução é razoavelmente boa (aceitável). O livro foi publicado em formato de bolso, tem capa fosca e papel off set branco.